Era uma vez uma sala com cheiro de café fresco e pão na chapa, onde o silêncio só era quebrado pelo som do tema de abertura de “Cavaleiros do Zodíaco” ou pelo grito de “Kamehameha” que ecoava na TV de tubo. Hoje, o mesmo espaço é tomado por tablets brilhantes, vídeos curtos, cortes rápidos e a constante troca de estímulos. Trocar um desenho inteiro por pílulas de dopamina visual parece trivial mas será que perdemos mais do que tempo de tela?
Vivemos um paradoxo: nunca tivemos tanto conteúdo, e nunca estivemos tão perdidos diante dele. O avanço da internet, aliado à onipresença dos serviços de streaming, criou uma espécie de buffet audiovisual infinito uma vitrine onde tudo brilha, mas nada satisfaz. É nesse cenário que surgem questões que afetam não só adultos, mas principalmente crianças: o excesso de opções, paradoxalmente, gera paralisia de escolha.
Com o boom da internet e dos streams fomos inundados por uma oferta de todos os tipos de conteúdo. Talvez não seja sobrecarregar pensando num coletivo, mas certamente no individual é, pois quantas vezes passamos a noite zapeando os streams com o controle com opções quase infinitas e não conseguimos escolher nada.
Este tipo de superoferta causa confusão e falta de clareza e perspectiva no que queremos e desejamos, seja um produto, um serviço, um filme ou uma série. Isso serve para adultos e crianças. E aí que chegamos na nossa questão: o excesso de conteúdo infantil soma-se à ansiedade e falta de concentração da sociedade moderna. Vemos cada vez menos capacidade das crianças em sentar no sofá e assistir um desenho completo, pois a demanda está cada vez mais em vídeos curtos que não necessitam de muita atenção.
Essa afirmação não é só um desabafo ela ecoa através da nossa sensação e dos dados, o consumo acelerado e fragmentado de conteúdo reforça um padrão de recompensa imediata, o que afeta diretamente a concentração e o desenvolvimento cognitivo prolongado, apontam vários estudos. E é aí que entra o impacto direto sobre os desenhos animados não apenas os que assistimos, mas como eles são feitos ou não produzidos mais.
O fim da narrativa: como o formato mudou
Antigamente, sentávamos para assistir episódios que nos prendiam por histórias contínuas, com começo, meio e fim, e que exigiam atenção e envolvimento emocional. Hoje, boa parte das animações infantis são episódicas, fragmentadas, ou pior: substituídas por vídeos curtos em redes como YouTubers e TikTokers. A estrutura narrativa foi sacrificada pela urgência do clique seguinte.
A nostalgia nos ensina que não é só o conteúdo que importa é como vivíamos esse conteúdo. Era o ritual: banho tomado, lanche na mão, controle em cima da mesinha da sala. A TV, naquele instante, não era apenas uma distração de uma criança para os pais terminarem tarefas. Era um verdadeiro programa de laser para mesma.
Desenhos que contavam histórias: linha narrativa contínua
Esses são os desenhos que nos prenderam não pela explosão de cor ou barulho, mas porque construíam mundos, desenvolviam personagens e nos faziam voltar todo dia, no mesmo horário, para descobrir o que aconteceria:
- Dragon Ball / Dragon Ball Z (1986–1996) Crunchyroll, Netflix
 - Cavaleiros do Zodíaco (1986) Netflix, Crunchyroll
 - Thundercats (1985) Max
 - He-Man e os Mestres do Universo (1983) YouTube (clássico), Netflix
 - Avatar: A Lenda de Aang (2005) Netflix
 - Sailor Moon (1992) Crunchyroll
 - Yu Yu Hakusho (1992) Netflix, Crunchyroll
 - Samurai X (1996) Crunchyroll
 - As Aventuras de Tintim (1991) YouTube oficial
 - Dungeons & Dragons / Caverna do Dragão (1983) YouTube, Looke
 
O que une esses títulos é a construção de um universo coeso e emocional. Um episódio levava ao outro. Existia consequência. Existia empatia. Nós torcíamos, chorávamos, vibrávamos.

Desenhos “avulsos”, mas memoráveis: formato episódico e atemporal
Mesmo sem uma linha contínua, havia algo nos desenhos abaixo que fazia com que cada episódio fosse um evento. Era humor físico, era carisma exagerado, era o tipo de narrativa que não envelhece:
- Tom e Jerry (desde 1940) Max
 - Pica-Pau (Woody Woodpecker, 1940+) YouTube
 - Looney Tunes (1930–1969) Max
 - Scooby-Doo, Cadê Você? (1969) Max
 - Os Flintstones (1960) Max
 - Os Jetsons (1962) Max
 - Corrida Maluca (1968) Max
 - Zé Colmeia (1958+) YouTube
 - Ursinhos Carinhosos (1985) Prime Video
 - Garfield e Seus Amigos (1988) YouTube
 
Essas obras eram simples na forma, mas brilhantes na execução. Cada um deles nos fazia rir, repetir bordões e imitá-los no recreio. Mais que isso: nos ensinavam ritmo, tempo, musicalidade e expressão visual.

Um sofá, uma tarde e a eternidade
Não se trata de comparar passado e presente como quem diz que “tudo era melhor antes” mas de lembrar que o que havia antes não era só o conteúdo, era um modo de experienciá-lo. Era o tempo mais lento, a TV como ritual coletivo, o episódio como uma promessa de felicidade momentânea.
Hoje, nossas crianças pulam de um estímulo ao outro como quem muda de brinquedo em um parque hiperativo. E a pergunta que nos resta, então, não é só o que elas estão assistindo, mas como estão assistindo e o que estão perdendo ao não permanecer por tempo suficiente com nada.
No fim das contas, talvez a maior saudade não seja de um desenho específico, mas daquela versão nossa que sentava de cabelo molhado, com um copo de Toddy na mão, e um coração inteiro pronto para se emocionar com um novo episódio.
Porque, ali, entre a imagem granulada e o som estéreo mal regulado, morava um tipo raro de atenção: a atenção plena da infância feliz.
                                    